domingo, 21 de dezembro de 2014

"Querem, então, filhos capazes de estar tristes e menos deprimidos?" Eduardo Sá



É verdade que as dificuldades apuram, muitas vezes, o engenho. Não tanto porque o sofrimento que elas não deixam de trazer seja recomendável mas, antes, porque quando a dor não é nem excessivamente aguda nem extensa em demasia acaba por mobilizar os recursos saudáveis que temos ao nosso dispor. É claro que nunca há males que vêm por bem! E é verdade que uma formulação como essa tem qualquer coisa de triunfal que acaba por ser um bocadinho batoteira. Em primeiro lugar, porque a sabedoria nos ajuda a compreender, por antecipação, os perigos que nos ameaçam, levando a que os evitemos. E, em segundo lugar, porque sempre que agradecemos as dores menos os aproveitamos com a humildade de quem vê nelas uma oportunidade para aprender. Seja como for, também para muitos pais, os males do seu crescimento nunca terão vindo por bem. Mas sem eles, muito provavelmente, nunca teriam reunido as competências com que a “escola da vida” lhes deu garra e perseverança, e os terá ajudado a ser acutilantes e afoitos para se tornarem mais guerreiros, mais aventureiros e vencedores.


Se é verdade que a vida nunca é cor de rosa para ninguém é de esperar que, apesar disso, todos os pais queiram poupar aos filhos as experiências mais cinzentas do seu crescimento, por mais que elas possam ter dado um empurrãozinho fundamental para que eles sejam, hoje, como são. Mas, sendo assim, o grande desafio de todos os pais passa por não deixarem de dar colo, por não deixarem de proteger os filhos (nomeadamente, protegê-los das dores mais preponderantes da sua própria infância) e, ao mesmo tempo, por lhes criarem as condições para que eles desenvolvam competências para o insucesso sem as quais talvez não se conquiste nem a autonomia nem a robustez que os tornem fortes e audazes. Por outras palavras: como se pode conquistar aquilo que algumas dores trarão sem que se tenha de sofrer com elas? Será esta, provavelmente, a quadratura do círculo que torna a educação dum filho desafiante e complexa. E a pergunta que fica será: como é que isso se faz? Com regras claras, com um permanente incentivo à autonomia e com uma relação mais verdadeira com os insucessos, por exemplo.

Esta ideia tão protetora que os pais acabam por ter em relação ao crescimento das crianças é compreensível. E ajuda-nos a perceber que, se as protegem quase demais, talvez eles tenham tido muito mais experiências infantis de sofrimento do que as suas dores declaradas levariam a supor (e que não terão sido, todas elas, compostas por acontecimentos com um formato XXL de dor, mas que talvez tivessem a ver com incidentes, mal-entendidos, falhas e omissões dos seus pais que eles próprios não terão valorizado). Mas onde nos leva este ideal tão anti-depressivo de crescimento? Será razoável para o crescimento duma criança? E, por mais que a aspiração dos pais nos toque a todos, pode uma criança crescer à margem dos riscos ou das dores? E será que quanto mais as protegemos da dor mais as tornamos felizes? Receio que não. Voltemos à “fórmula” anterior: a mim parece-me que quanto mais somos omissos nas regras (e esquecemos que os pais bonzinhos são pais suficientemente maus), quanto mais condescendemos com a falta de autonomia das crianças (a que os pais chamam preguiça, como se fosse ela um “defeito de fabrico”), e quanto mais pomos “pó de arroz” nos seus erros e nas suas falhas (como se qualquer dor mais parecesse um traumatismo) mais acabamos a criar condições para que as crianças se deprimam. Porquê? Porque apesar de lhes darmos recursos fantásticos para o seu crescimento, talvez as poupemos às oportunidades de, com pequenas dores, elas os lapidarem e desenvolverem. Chegamos, assim, a um dilema: por falta de “dores do crescimento”, talvez não deixemos de lhes criar uma “imunodeficiência adquirida” à dor. E − sim! − em vez de as tornarmos robustas, ajudamos, mais do que seria o nosso desejo, para que se tornem frágeis. Mas − que isso fique claro − isso deve-se mais à ideia de que os bons pais nuÉ verdade que as crianças


Mas será que a fragilidade das crianças é uma fatalidade, como se elas estivessem condenadas a estar tristes? Claro que não! E é aqui que nos devemos centrar: por mais que erremos, muitas vezes, como pais, as crianças só parecem... crianças, em relação a tudo aquilo que se passa nas suas vidas, não tanto porque vivam distraídas mas, antes, porque os recursos saudáveis que os pais lhes vão fornecendo as torna autênticos “todo-o-terreno”. Não digo que sejam invulneráveis ao sofrimento. Mas que, apesar das nossas falhas, elas não se partem. Mais: os erros dos pais são, até, o sal do crescimento das crianças.

Mas, se é assim, porque é que se fala, como nunca se falou, da depressão das crianças? É verdade que todos os anos se registam muitos milhares de novos casos psiquiátricos de depressão nas crianças? E que isso se deva ou ao número de divórcios, ou à falta de famílias alargadas ou ao consumo de videojogos, como há quem afirme? Tentamos ir, de novo, pela sensatez. Não é verdade que hoje as crianças se deprimam mais! O que se passa é que a abordagem psiquiátrica do sofrimento das crianças, isso sim, tem ganho a preponderância que, felizmente, noutros tempos não existia. E, com mais rigor, que a medicalizacao psiquiátrica das crianças tem manifestado saltos exuberantes que parecem não merecer ponderação e que a hospitalização psiquiátrica de crianças começa a merecer uma aragem cada vez mais assustadora. Como se, hoje, o sofrimento das crianças existisse como uma realidade surpreendente e enigmática (quase ao nível duma epidemia atípica), sem que se meçam as consequências que a dor depressiva foi tendo em todas nas gerações dos seus avós e dos seus pais, por exemplo, e que fez com que muito deles a expressassem por perturbações de comportamento gravíssimas e por inibições cognitivas terríveis (o que levou, por exemplo, ao longo dos anos, a presumir-me que havia crianças inteligentes e crianças burras, sem nunca se perguntar em que medida as dores que elas iam enquistando não terão representado uma verdadeira “força de bloqueio” para as competências afetivas e cognitivas que não deixavam de ter).

Por outras palavras: é verdade que há muitas crianças que se deprimem; é verdade que os pais são, hoje, mais competentes como pais do que as suas próprias famílias terão sido (e, por isso, há menos crianças a deprimir, e menos haveria se os pais tivessem menos medo de ser pais e mais escutassem quem os ajude a sê-lo); é verdade que os pais são os verdadeiros anti-depressivos dos filhos (mas não deixa de ser verdade que as famílias mais alargadas de antigamente, por mais que fossem preciosas, não resolviam a dor depressiva da omissão e dos maus tratos de muitos pais, muito mais graves do que aqueles que observamos hoje); e é verdade que as crianças se estragariam menos se trabalhassem menos e vivessem com menos stresse e com menos compromissos (e que, até nisso, os pais podem dar uma ajudinha preciosa). Mas, apesar disso, deixem-nas em paz! E lembrem a quem fala da depressão como um perigo que se cura com gotinhas que a tristeza é um formidável anti-depressivo. Não a tristeza crónica, claro. Mas aquela que todas as pessoas de coração grande, de sangue quente e de sensibilidade à flor da pele não deixam de ter. A tristeza que precisa de ser falada, e a que precisa do corpo, em silêncio, de quem gosta de nós, bem perto do nosso (por dez minutos, que seja). A tristeza que resulta de tantas pequenas-coisas dum dia-não que, quando se vai para a descrever, dá um jeito precioso que haja quem nos sinta em si e que fale por nós.

Querem, então, filhos capazes de estar tristes e menos deprimidos? Deixem, por favor, de ser pais assustadiços. Façam deles filhos únicos, por meia hora, todos os dias. Nunca comecem todas as conversas, em que vão à procura de os conhecer melhor, com um novo “como foi a escola?”! Deixem-nas brincar, deixem-nas correr, deixem-nas sujar-se, deixem-nas falar e deixem-nas fantasiar! Obriguem-nas a ser crianças em vez de as quererem como jovens tecnocratas de sucesso. Deixem-nas errar e zanguem-se sempre que elas façam de “certinhas”. Lembrem-se do jeito que teria dado terem tido pais a lembrarem-se da sua própria infância quando falam com os filhos. Sintam-nos, primeiro; e imaginem-nos, depois. E arrisquem (arrisquem!) nos palpites que tenham acerca do que se passa com as crianças quando se trata de falar. Mas falem, por favor! E, já agora, nunca se esqueçam: se há aspetos preocupantes na vida das crianças o maior de todos será o lado medricas (e depressivo, até) de muitos pais.


FONTE