Os Professores (Valter Hugo Mãe)
"Achei por muito tempo que ia ser professor. Tinha pensado em livros
a vida inteira, era-me imperiosa a dedicação a aprender e não guardava
dúvidas acerca da importância de ensinar. Lembrava-me de alguns
professores como se fossem família ou amores proibidos. Tive uma
professora tão bonita e simpática que me serviu de padrão de felicidade
absoluta ao menos entre os meus treze e os quinze anos de idade.
A escola, como mundo completo, podia ser esse lugar perfeito de
liberdade intelectual, de liberdade superior, onde cada indivíduo se
vota a encontrar o seu mais genuíno, honesto, caminho. Os professores
são quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se o caminho
das pedras na porcaria do mundo em que o mundo se tem vindo a tornar.
Nunca tive exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos
breves, a muito custo, e tento explicar umas clarividências ao cão que
tenho há umas semanas. Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo na
passagem do testemunho. Quero muito que o Freud, o meu cão, entenda que
estabeleço regras para que tenhamos uma vida melhor, mas não suporto a
tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora na marquise. Sei
perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei didática, não sou
senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho
dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir
conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe.
Os alunos nascem diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de
dentro de si mesmos a partir do entusiasmo e das palavras dos
professores que os transformam em melhores versões. Quantas vezes me
senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a caminho de casa
como se tivesses crescido um palmo inteiro durante cinquenta minutos.
Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver
tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os
discutisse comigo.
Houve um dia, numa aula de história do sétimo ano, em que falámos
das estátuas da Roma antiga. Respondi à professora, uma gorduchinha toda
contente e que me deixava contente também, que eram os olhos que
induziam a sensação de vida às figuras de pedra. A senhora regozijou.
Disse que eu estava muito certo. Iluminei-me todo, não por ter sido o
mais rápido a descortinar aquela solução, mas porque tínhamos visto
imagens das estátuas mais deslumbrantes do mundo e eu estava esmagado de
beleza. Quando me elogiou a resposta, a minha professora contente
apenas me premiou a maravilha que era, na verdade, a capacidade de
induzir maravilha que ela própria tinha. Estávamos, naquela sala de
aula, ao menos nós os dois, felizes. Profundamente felizes.
Talvez estas coisas só tenham uma importância nostálgica do tempo
da meninice, mas é verdade que quando estive em Florença me doíam os
olhos diante das estátuas que vira em reproduções no sétimo ano da
escola. E o meu coração galopava como se tivesse a cumprir uma sedução
antiga, um amor que começara muito antigamente, se não inteiramente
criado por uma professora, sem dúvida que potenciado e acarinhado por
uma professora. Todo o amor que nos oferecem ou potenciam é a mais
preciosa dádiva possível.
Dá-me isto agora porque me ando a convencer de que temos um governo
que odeia o seu próprio povo. E porque me parece que perseguir e tomar
os professores como má gente é destruir a nossa própria casa. Os
professores são extensões óbvias dos pais, dos encarregados pela
educação de algum miúdo, e massacrá-los é como pedir que não sejam
capazes de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos miúdos, que é
pior do que nos arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a casa,
é pior do que comer apenas sopa todos os dias.
Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os
professores, e as escolas, que são fundamentais para melhorarem os
nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas reside a esperança toda de
que, um dia, o mundo seja um condomínio de gente bem formada, apaziguada
com a sua condição mortal mas esforçada para se transcender no alcance
da felicidade. E a felicidade, disso já sabemos todos, não é individual.
É obrigatoriamente uma conquista para um coletivo. Porque sozinhos por
natureza andam os destituídos de afeto.
As escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os
professores não podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos.
Não é indiferente ensinar vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os
alunos não podem abdicar da maravilha nem do entusiasmo do conhecimento.
E um país que forma os seus cidadãos e depois os exporta sem piedade e
por qualquer preço é um país que enlouqueceu. Um país que não se ocupa
com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a
suicidar-se. Odeia e odeia-se."
Autobiografia Imaginária | Valter Hugo Mãe | JL Jornal de Letras, Artes e Ideias | Ano XXII | Nº 1095 | 19 de Setembro de 2012