Mauro Paulino, um psicólogo clínico e forense com um mestrado em Medicina Legal, viu-se no centro da polémica relacionada com a criação das listas de pedófilos quando a ministra da Justiça caucionou esta opção política aludindo às “elevadíssimas taxas de reincidência” dos pedófilos mencionadas numa entrevista que deu em 2009, na sequência da publicação de uma obra sua sobre abusadores sexuais de crianças. Apesar de ter recentemente desmentido essas estatísticas, elas continuam a ser citadas.
A ministra da Justiça vai esta quarta-feira ao Parlamento defender a sua proposta de lei das listas de pedófilos, segundo a qual os pais com fundadas suspeitas sobre determinada pessoa poderão ser autorizados pela polícia a saber se determinada pessoa da sua área de residência foi ou não condenada por abuso de menores. O psicólogo forense Mauro Paulino, que faz perícias a abusadores e a crianças abusadas, pensa que é o tipo de coisa que desvia as atenções do que é fulcral nesta matéria: educação sexual nas escolas, ter pais sem medo de lidar com a sexualidade dos filhos e tratar, do ponto de vista psicológico, quem cumpre pena na cadeia por este crime.
Onde radica o equívoco relacionado com as taxas de reincidência dos abusadores de menores?
A taxa de reincidência dos abusadores varia entre 15 e 20%, dependendo dos estudos. No meu diz-se que 80% dos abusos de menores ocorrem em contexto intra-familiar, sendo que 80% a 90% desses 80% são cometidos por pais. São as únicas vezes que lá aparece esse número. Nunca ninguém do Ministério da Justiça falou comigo até hoje. O que é estranho, não é? Quando se quer fazer uma mudança legislativa, se sabemos que há um investigador português na matéria podemos pelo menos contactá-lo.
A proposta de lei diz que quem pode vir a saber se existe ou não alguém condenado por abuso de menores na sua área de residência são precisamente os pais, ou os educadores...
Mesmo que a taxa de reincidência dos abusadores fosse mais alta havia uma série de questões à volta disto que teriam de ser operacionalizadas. Muitas vezes a família depende economicamente do agressor. Por isso silencia o abuso sexual. Os pais podem ficar tranquilos perante determinado agressor pelo facto de o seu nome não constar da lista. Ora ele pode nunca ter sido condenado e nesse caso a criança continua a ser abusada por ele. A taxa de reincidência da violência doméstica é da ordem dos 53%.
Um site brasileiro, país onde já trabalhou, também lhe atribui a divulgação deste dado estatístico...
Não conheço, Mas, pela terminologia que estou agora a ver que foi usada da notícia, a informação parece vir também na notícia do Expresso . E a data da notícia desse site é anterior ao meu primeiro trabalho no Brasil.
Como se sente ao ver o seu trabalho ser usado para caucionar esta proposta de lei?
Incomoda-me. Se existem estudos nesse sentido não tenho conhecimento deles. Nunca vi semelhantes taxas de reincidência. Eu não tenho qualquer intenção política. A minha preocupação é enquanto profissional da psicologia, enquanto investigador.
A compulsividade de que se fala em relação aos abusadores é real?
Depende dos abusadores. A literatura distingue os abusadores primários, ou preferenciais, que estão sobretudo associados a situações de pedofilia. E aí há uma compulsão maior porque estamos perante uma perturbação da sexualidade: o sujeito só se excita perante determinado estímulo, crianças neste caso. Depois temos os abusadores situacionais ou secundários, mais ligados – não quer dizer que sempre – a situações de incesto, que não têm necessariamente de ter uma compulsão, porque não sofrem necessariamente de uma perturbação da sexualidade.
No primeiro caso estamos a falar de algo incontrolável?
Depende dos recursos do agressor: se se consegue afastar das crianças, se tem acesso a eles. Pelo seu modus operandi sabemos que procuram estar em contacto com elas – fazendo voluntariado em campos de férias ou em escolas, por exemplo.
A actual legislação portuguesa previne o suficiente?
Não. Começa logo pela falta de educação sexual nas escolas e pela falta de tratamento psicológico nas prisões das pessoas que já foram condenadas.
Há muitos pais que hoje ainda têm algum preconceito em avisar os filhos sobre o que lhes pode suceder?
Há ainda uma grande resistência – embora cada vez menos – dos pais em abordar temáticas da sexualidade, em preparar os filhos para a vida sexual.
Isso não põe a criança em risco?
Põe mais em risco, sim. A criança devia aprender desde cedo que zonas do corpo podem ou não ser tocadas – e caso isso aconteça a quem podem ou não recorrer. Há várias formas de ensinar isso. Uma criança com quatro ou cinco anos pode muito bem pintar num desenho a vermelho as zonas do corpo que não podem ser tocadas e a verde as que que podem. “Estas zonas a vermelho só quando a mãe dá banho, ou quando vais ao médico”, pode dizer-se-lhe. O facto de isto não ser ensinado aumenta a probabilidade de abuso. Todo o ensino passa por chamar pilinha e pipi aos órgãos sexuais em vez de pénis e vagina, que são palavras proibidas. Se a criança lidar com a palavra pénis ou vagina com normalidade desde tenra idade, se tiver que as evocar fá-lo-á com mais facilidade: alguém mexeu, alguém fez. Outra coisa básica que se deve ensinar à criança desde cedo é que uma coisa são surpresas e outra são segredos. O abuso sobrevive mais tempo através do segredo. Por isso, temos de ensinar-lhe que os segredos têm um prazo – a festa-surpresa para a avô, por exemplo – e não se têm com todos os adultos.
A educação sexual cabe à escola ou aos pais?
A ambos. Começa por caber aos pais, mas na adolescência há coisas de que já não se falam com os progenitores – e aí é importante haver outro adulto significativo, na escola.
Já se deparou com casos de crianças que teriam conseguido escapar caso tivessem sido prevenidas pelos os pais?
Sim. Concerteza. Exemplo: os pais abandonam muitas vezes os filhos em frente ao computador e isso faz com que estejam mais vulneráveis. Depois têm sentimentos de culpabilidade, por não terem percebido que aquilo estava a acontecer.
O processo Casa Pia mudou qualquer coisa a este nível?
Mudou. Criou uma primeira fase de alarmismo social: qualquer manifestação de afecto a uma criança poderia configurar um abuso, na fantasia de alguns adultos. Agora tanto nestes casos como dos de violência doméstica pensa-se existir um fenómeno de iceberg: grande parte destes crimes continua a estar numa zona oculta. A prevalência é maior do que aquilo que é denunciado. Por outro lado, também há vários casos de divórcios litigiosos em que são feitas falsas acusações de abuso para afastar os pais dos filhos.
Que sinais dá uma criança abusada?
Não são um ou dois sinais que são preocupantes. Só há um indicador inequívoco de abuso sexual, e é raro: a gravidez. Mas existe uma série de indicadores físicos e comportamentais que, somados, podem criar uma constelação que identifica uma potencial situação de abuso: a criança deixar de cuidar da imagem, apatia, dificuldades em sentar-se, roupa interior rasgada ou com manchas. Outra questão que é importante referir é que existe a ideia de que o abusador sexual é um monstro. Mas na verdade não tem um rótulo na testa e muitos deles são pessoas de confiança dos pais. Os pedófilos, sobretudo, são bastante sedutores e manipuladores. Por outro lado, alguns estudos indicam que a maioria dos seus comportamentos são de sedução e de manipulação dos órgãos genitais, e não tanto de penetração.
Para não serem tão facilmente apanhados ou porque isso faz parte desta parafilia?
Acredito que seja uma mistura de ambas as explicações.
Até onde pode ir a justiça no cercear de direitos? Entre as soluções adoptadas em vários países estão a monitorização por chip electrónico, a castração química, a obrigatoriedade de informar os vizinhos quando se sai da cadeia…
A investigação mostra que não há ganhos significativos com estas medidas e que o seu custo não compensou. Um estudo de 2012 diz que o registo e notificação de agressores sexuais tem pouco efeito ao nível da redução da dissuasão da reincidência; e que os decisores políticos e os clínicos devem concentrar esforços nos criminosos sexuais identificados como sendo de elevado risco. Cada vez mais as políticas públicas têm de ser feitas com grupos de trabalho com especialistas. Temos uma Sociedade Portuguesa de Sexologia, temos uma Ordem dos Psicólogos e uma Ordem dos Médicos… e fazemos política como?
Estas organizações não foram consultadas para a proposta que vai quarta-feira ao Parlamento?
Não creio, porque senão não se tinha usado o título de um jornal que já foi desmentido. Fiquei surpreendido, não é assim que se faz política. As várias especialidades que podem dar o seu contributo para a resolução do problema têm de ser ouvidas.
Qual a melhor maneira de intervir neste fenómeno?
Psicologia clínica nas prisões, educação sexual nas escolas. Mas nesta altura temos três dezenas de psicólogos a trabalhar quase em part-time para cerca de 14 mil presos.
É a favor do uso de medicação?
Essa é outra ilusão. A castração química não resolve o problema: tira a erecção mas o agressor vai poder continuar a manipular os órgãos genitais da criança. O que é preciso é trabalhar o controlo dos impulsos, a baixa auto-estima, criar estratégias de resolução dos problemas perante situações de stress…
Isso resulta?
[mostra uma tabela do seu livro, Abusadores Sexuais de Crianças: A verdade escondida ] Tem aqui um quadro com os resultados de vários estudos que comparam a reclusão com e sem tratamento. E apesar de não reduzir para zero a reincidência eles mostram que, com tratamento, ela diminui. Quando se cria um registo de agressores não existem ganhos significativos, mostram os estudos existentes.
Jorge Sampaio falou em justiça de pelourinho, numa referência aos linchamentos que esta lei pode desencadear. Será um risco real?
Os dados de que tenho conhecimento não falam desse tipo de reacções – e sim de estigma social. Volto a sublinhar: têm de ser criados grupos de trabalho de especialistas. A ciência tem de ser ouvida.
Se esta lei for aprovada não mudará então o actual panorama?
Um estudo de 2011 diz-nos que o registo de criminosos sexuais e notificação dos mesmos não foi um preditor significativo de reincidência sexual ou geral. Falar na lista de pedófilos é desviar a atenção de questões fulcrais para a prevenção deste tipo de crimes: educação sexual nas escolas, intervenção nas prisões e capacitar os pais para saberem educar os filhos do ponto de vista da sexualidade.
Uma criança abusada torna-se sempre um adulto abusador?
Nem todas as crianças abusadas se tornam abusadores. Um estudo feito nos EUA mostra que abusadores que diziam ter sido abusados em crianças admitiam, quando sabiam que iam ser submetidos ao polígrafo, que isso afinal não lhes tinha sucedido. Mentiam por estratégia de desculpabilização.
Essa criança tem portanto hipóteses de recuperação?
Se for activada uma rede social de apoio, com intervenção psicológica.
Quando fala com um abusador o que alega ele em sua defesa?
É típico os abusadores de crianças apresentarem distorções cognitivas, no sentido de banalizarem ou legitimarem os seus comportamentos. Eles ameaçam a criança, ou pedem segredo – têm noção de que estão a cometer um ilícito. Mas alegam que a criança é sedutora, que os provoca, que sabe muito bem aquilo que quer. Também temos questões culturais: há uns anos os pais achavam-se no direito de iniciar sexualmente as filhas.
Como vê o papel das comissões de protecção de menores?
Apesar de toda a boa vontade dos técnicos e da competência quem as dirige, é impossível fazer um trabalho bem feito em part-time . Os técnicos vão lá dar um bocadinho do seu tempo. Não tem sentido. Há falta de discernimento, uma vez mais, para olharmos para o que a ciência nos diz: que fica mais barato prevenir do que intervir mais tarde. Em cada dólar gasto na prevenção estamos a poupar cinco.